sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Princípio Regulador do Culto


O Princípio Regulador do Culto
Brian Schwertley

O Princípio Regulador da Escritura — Sola Scriptura
Devido à natureza humana pecaminosa, o povo pactual de Deus não raro se desvia da verdade. É comum o homem perverter a verdadeira religião ao eliminar elementos considerados desagradáveis. Ele também a corrompe pela adição de idéias próprias. Essa tendência de deturpar a verdadeira religião, mediante adição ou subtração, constitui a razão de Deus ter advertido Israel de nada acrescentar ou retirar de sua Palavra:
Agora, pois, ó Israel, ouve os estatutos e os juízos que eu vos ensino, para os cumprirdes; para que vivais, e entreis, e possuais a terra que o Senhor Deus de vossos pais vos dá. Não acrescentareis à palavra que vos mando, nem diminuireis dela, para que guardeis os mandamentos do Senhor vosso Deus, que eu vos mando (Dt 4.1,2).
Esta passagem da Escritura — além de outras semelhantes a ela — forma a base da doutrina chamada sola Scriptura [só a Escritura] dos reformadores protestantes. Isto é, somente a Bíblia é a autoridade final em todas as questões de fé e prática.
Todo o conselho de Deus concernente a todas as coisas necessárias para a glória dele e para a salvação, fé e vida do homem, ou é expressamente declarado na Escritura ou pode ser lógica e claramente deduzido dela. À Escritura nada se acrescentará em tempo algum, nem por novas revelações do Espírito, nem por tradições dos homens [...] há algumas circunstâncias, quanto ao culto de Deus e ao governo da Igreja, comuns às ações e sociedades humanas, as quais têm de ser ordenadas pela luz da natureza e pela prudência cristã, segundo as regras da Palavra, que sempre devem ser observadas”.[1]
Portanto, tudo o que o homem faz deve ter por base mandamentos explícitos da Escritura, deve ser deduzido de forma lógica ou clara (e.g., exemplo histórico,[2] implicação etc.) ou, caso seja circunstancial, ser ordenado pela luz da natureza e da prudência cristã, de acordo com as regras gerais da Palavra (e.g., tempo ou lugar de reunião etc.). O mandamento de Moisés, encontrado em Deuteronômio 4.2, é o Princípio Regulador divino, em sentido mais amplo. A autoridade final para o homem, e a marca d’água para a vida, está revelada na Bíblia.

O Princípio Regulador do Culto
A Bíblia é nossa única regra infalível concernente à fé e prática. Não há área da vida na qual essa verdade seja mais aplicável que no respeitante ao culto. Antes de entrar na terra prometida, Deus advertiu os israelitas da idolatria e do sincretismo (i.e., mistura) com os cultos pagãos:
Guarda-te, que não te enlaces seguindo-as, depois que forem destruídas diante de ti; e que não perguntes acerca dos seus deuses, dizendo: Assim como serviram estas nações os seus deuses, do mesmo modo também farei eu. Assim não farás ao Senhor teu Deus; porque tudo o que é abominável ao Senhor, e que ele odeia, fizeram eles a seus deuses; pois até seus filhos e suas filhas queimaram no fogo aos seus deuses. Tudo o que eu te ordeno, observarás para fazer; nada lhe acrescentarás nem diminuirás (Dt 12.30-32).
Tudo o que não é ordenado pela Escritura no culto a Deus é proibido. Tudo o que a igreja realiza no culto deve ter base em um mandamento divino explícito, ser lógica e claramente deduzido dele, ou derivar-se de um exemplo histórico aprovado (e.g., a alteração do sétimo dia para o dia do Senhor para o culto comunitário).
Da mesma forma que na Antiga Dispensação nenhum aspecto do culto ou da disciplina da Igreja de Deus foi confiado à sabedoria ou ponderação humana — todas as coisas foram prescritas de modo objetivo pela autoridade divina —, também sob a Nova [Dispensação], nenhuma outra voz é ouvida na casa da fé, a não ser a do Filho de Deus. O poder da igreja é apenas ministerial e informativo. Ela deve apenas manter a doutrina, fazer cumprir as leis e executar o governo outorgado por Cristo. Nada do que o Senhor estabeleceu deve ser adicionado ou subtraído por ela. A igreja não possui poder discricionário.[3]
O conceito corrente entre as igrejas protestantes é o da permissibilidade de tudo o que não é explicitamente proibido na Bíblia. Esse conceito era, e ainda é, aceito pelas igrejas luteranas e episcopais. As primeiras igrejas reformadas e protestantes rejeitaram esse conceito por não ser bíblico. A Confissão de fé de Westminster diz:
... o modo aceitável de adorar o verdadeiro Deus é instituído por ele mesmo, e é tão limitado pela sua própria vontade revelada, que ele não pode ser adorado segundo as imaginações e invenções dos homens [...] ou de qualquer outro modo não prescrito nas Santas Escrituras.[4]
O que hoje designamos Princípio Regulador do Culto não é algo inventado por João Calvino ou John Knox, mas se trata de um imperativo divino. É um aspecto crucial da lei divina:
Dizemos que o mandamento de nada acrescentar é parte orgânica da lei toda, como lei e, portanto, toda adição humana ao culto divino, ainda que não contrarie nenhum mandamento de forma particular, é contrária ao mandamento geral de que nada deve ser adicionado.[5]

As circunstâncias do culto
A fim de entender o Princípio Regulador do Culto de forma adequada, deve-se perceber a diferença entre ordenanças referentes ao culto e suas circunstâncias, ou aspectos secundários. As ordenanças do culto são recebidas por orientação divina. Toda ordenança do culto é prescrita por Deus. Qualquer coisa relacionada a ele, com significado religioso e moral, deve se basear em ordenanças divinas (explícitas ou implícitas) ou em exemplos históricos aprovados. A igreja recebe todas as ordenanças do culto da parte de Deus, como foram reveladas na Bíblia. Ela deve obedecer a todas as ordenanças divinas e não possui autoridade para adicionar ou subtrair algo ordenado por Deus.
As circunstâncias do culto não dizem respeito ao conteúdo ou à cerimônia, mas referem-se ao que é “comum às ações e sociedades humanas”. A única forma de alguém aprender uma ordenança relativa à adoração é estudar a Bíblia e ver o que Deus ordena. No entanto, as circunstâncias do culto independem de instruções bíblicas explícitas; elas dizem respeito exclusivamente à revelação geral e ao bom senso (“prudência cristã”). Crentes e incrédulos sabem, indistintamente, que proteção e aquecimento são úteis para conduzir uma reunião nos meses frios* Também entendem a necessidade de acomodação, iluminação, vestuário etc. Além disso, depreende-se a escolha prévia de um horário para a realização da reunião. Existem muitos aspectos comuns entre reuniões civis (ou seculares) e religiosas independentes de instruções bíblicas específicas. Essas são as circunstâncias, ou aspectos secundários, do culto.
Ordenanças referentes ao culto[6] versus circunstâncias

Ordenanças
Pregação a partir da Bíblia (Mt 26.13; Mc 16.15; At 9.20; 2Tm 4.2; At 20.8, 17.10; 1Co 14.28)
Leitura da Palavra de Deus (Mc 4.16-20; At 13.15; 1Tm 4.13; Ap 1.13; At 1.13, 16.13; 1Co 11.20)Reunião no dia do Senhor (At 20.7; 1Co 16.2; Ap 1.10; At 20.7; 1Co 11.18)Administração dos sacramentos (Mt 28.19; Mt 26.26-29; 1Co 11.24-25)
Audição da Palavra de Deus (Lc 2.46; At 8.31; Rm 10.41; Tg1.22)
Oração a Deus (Dt 6.9; 1Ts 5.17; Hb 13.18; Fp 4.6; Tg 1.5; 1Co 11.13-15; Dt 22.5)
Cântico de salmos (1Cr 16.9; Sl 95.1,2; Sl 105.2; 1Co 14.26; Ef 5.19; Cl 3.16)
CircunstânciasEstrutura da reunião da igreja (At 20.8, 17.10; 1Co 14.28)Local da reunião da igreja (At 1.13, 16.13; 1Co 11.20 )Horário da reunião da igreja (At 20.7; 1Co 11.18)Roupas para a reunião (1Co 11.13-15; Dt 22.5)Tipo de assento provido (Lc 4.20; At 20.9)
Note que todos os elementos verdes ser aprendidos da Palavra de Deus. Tudo o que se encontra em vermelho é circunstância comum a todos os habitantes do universo criado por Deus. As ordenanças do culto são limitadas numericamente pela revelação divina. As circunstâncias do culto são praticamente de número infinito, baseando-se no bom senso de homens guiados pela “prudência cristã”. Pelo fato de o homem ter sido criado à imagem de Deus, e dada sua necessidade de viver em função da realidade divinamente criada (o universo), ele de viver e agir de acordo com essa realidade. As pessoas não necessitam de instruções explícitas da Bíblia para vestir um casaco quando a temperatura exterior chega aos cinco graus centígrados. Porém, os homens precisam de instruções claras da Bíblia sobre como se aproximar do Deus infinitamente santo.

O Princípio Regulador do Culto é ensinado por toda a Bíblia.
Segue-se o exame das diversas passagens bíblicas que comprovam a proibição de tudo o que não é ordenado na Escritura a respeito do culto a Deus. As ordenanças do culto devem basear-se especificamente nas afirmações divinas, não em opiniões ou tradições humanas.
A oferta inaceitável
E aconteceu ao cabo de dias que Caim trouxe do fruto da terra uma oferta ao Senhor. E Abel também trouxe dos primogênitos das suas ovelhas, e da sua gordura; e atentou o Senhor para Abel e para a sua oferta. Mas para Caim e para a sua oferta não atentou. E irou-se Caim fortemente, e descaiu-lhe o semblante (Gn 4.3,5).
O que havia na oferta de Caim para torná-la inaceitável aos olhos de Deus? A preferência pela oferta de Abel e a rejeição da de Caim não foi arbitrária; ela se baseou na revelação apresentada a Adão e sua família. É óbvio que Deus revelou essa informação a Adão ao matar animais para cobrir o homem e sua mulher (Gn 3.21). Gerações mais tarde, Noé sabia que Deus aceitaria apenas animais e aves puros como holocausto (Gn 8.20). Caim, diferentemente do irmão Abel, decidiu, à parte da Palavra de Deus, que a oferta de frutos da terra seria aceitável ao Senhor. Deus, porém, rejeitou a oferta de Caim por ser uma invenção de sua mente. Ele não a ordenara; portanto, ainda que Caim fosse sincero no desejo de agradar a Deus, ele a rejeitaria da mesma forma.
Deus espera fé e obediência à sua Palavra. Se o povo de Deus pode cultuar o Senhor segundo sua vontade, pelo fato de ordenanças humanas não serem expressamente proibidas, então não poderiam Caim, Noé ou os levitas oferecer a Deus uma salada de frutas ou uma cesta de nabos, por não haver proibição? E se Deus desejasse uma regulamentação estrita de seu culto à parte do Princípio Regulador, não seriam necessárias centenas de volumes (ou talvez milhares deles) para nos informar das proibições? No entanto, Deus, em sua infinita sabedoria, diz: “Tudo o que eu te ordeno, observarás para fazer; nada lhe acrescentarás nem diminuirás” (Dt 12.32).
Fogo estranho
E os filhos de Arão, Nadabe e Abiú, tomaram cada um o seu incensário e puseram neles fogo, e colocaram incenso sobre ele, e ofereceram fogo estranho perante o Senhor, o que não lhes ordenara. Então saiu fogo de diante do Senhor e os consumiu; e morreram perante o Senhor (Lv 10.1,2).
Qual foi o pecado deles? Seu pecado foi o oferecimento de fogo estranho, portanto o texto diz que eles ofereceram fogo estranho, o que Deus não lhes ordenara... Contudo, onde Deus o proibira? Onde encontramos que Deus lhes proibiu o oferecimento de fogo estranho, ou a designação do oferecimento de apenas um tipo de fogo? Não existe texto na Escritura que se possa achar, do começo de Gênesis até esse ponto, onde Deus tenha dito terminantemente, de maneira expressa: Oferecerás apenas um tipo de fogo. No entanto, aqui, eles foram consumidos por Deus com fogo, por terem oferecido “fogo estranho”.[7]
Quem rejeita o Princípio Regulador do culto divino enfrenta um problema real para explicar esse texto. Alguns afirmam que Nadabe e Abiú foram condenados por terem oferecido “incenso estranho”, por sua condenação expressa em Êxodo 30.9. Porém o texto não diz “incenso estranho”, mas “fogo estranho”. Outros declaram que lhes faltava sinceridade ou que estavam embriagados. Entretanto, qual razão nos apresenta o Espírito Santo para o juízo deles? Eles ofereceram fogo estranho “o que não lhes ordenara”. Quando se trata do culto a Deus, deve haver apoio da Palavra divina.
Todos os elementos do culto a Deus devem basear-se na Palavra de Deus [e] serem ordenados. É insuficiente sua não-proibição [...] Quando o ser humano concede respeito religioso a um objeto, por virtude de sua instituição, mesmo sem apoio da parte de Deus, eis uma superstição! Todos devemos ser adoradores voluntários, mas não pessoas de devoção voluntariosa.[8]

O erro de Davi e de seus homens
E puseram a arca de Deus em um carro novo, e a levaram da casa de Abinadabe, que está em Gibeá; e Uzá e Aiô, filhos de Abinadabe, guiavam o carro novo. E levando-o da casa de Abinadabe, que está em Gibeá, com a arca de Deus, Aiô ia adiante da arca. E Davi, e toda a casa de Israel, festejavam perante o Senhor, com toda a sorte de instrumentos de pau de faia, como também com harpas, e com saltérios, e com tamboris, e com pandeiros, e com címbalos. E, chegando à eira de Nacom, estendeu Uzá a mão à arca de Deus, e pegou nela; porque os bois a deixavam pender. Então a ira do Senhor se acendeu contra Uzá, e Deus o feriu ali por esta imprudência; e morreu ali junto à arca de Deus. (2Sm 6.3-7).
Davi e os homens envolvidos no transporte da arca eram inquestionavelmente sinceros no desejo de agradar a Deus com o intuito de levar a arca a Jerusalém. Todavia, o resultado desse esforço sincero foi o juízo divino: Uzá tentou evitar a queda da arca com sua mão por amar a Deus e se preocupar com sua arca. Porém, a despeito de toda a sua sinceridade e boas intenções, acendeu-se a ira de Deus, e ele matou Uzá. Por quê? Porque a questão toda era muito ofensiva a Deus. O fato de Uzá ter tocado na arca foi o ponto culminante das ofensas desse dia.
Os objetores do Princípio Regulador apostam no fato de Uzá ter sido morto por algo claramente proibido na lei de Deus (i.e., tocar na arca). Sim, é verdade que Uzá morreu pela violação de uma proibição explícita da lei (Nm 4.15). No entanto, a análise do rei Davi a respeito do que aconteceu errado naquele dia inclui todos os envolvidos, não apenas Uzá:
Porquanto vós [os levitas] não a levastes na primeira vez, o Senhor nosso Deus fez rotura em nós, porque não o buscamos segundo a ordenança. Santificaram-se, pois, os sacerdotes e os levitas, para fazerem subir a arca do Senhor Deus de Israel. E os filhos dos levitas trouxeram a arca de Deus sobre os seus ombros, pelas varas que nela havia, como Moisés tinha ordenado conforme a palavra do Senhor (1Cr 15.13-15).
Pelo fato de Deus ter ordenado aos levitas para carregar a arca com varas (Nm 4.6,15), era desnecessário proibir os homens de Judá de usar um carro de boi para transportá-la. O rei Davi e seus homens deveriam ter consultado a lei de Moisés e obedecido à sua prescrição. Em vez disso, eles agiram de forma pragmática. Imitaram os filisteus, que haviam usado um carro para levar a arca de volta a Bete-Semes. Quando se trata do culto a Deus, não nos é permitido improvisar, por melhores que sejam as intenções. A sinceridade é importante, mas ela deve estar de acordo com a revelação divina. Mesmo em relação às questões religiosas que nos pareçam pequenas ou triviais, Deus ordena nossa ação segundo sua vontade revelada, e não inovações concordes com a nossa vontade: “A grande lição para todos os tempos é precaver-se de seguir as próprias sugestões no culto a Deus quando possuímos instruções claras de sua Palavra sobre o modo de cultuá-lo”.[9]

Condenação do culto autônomo
E edificaram os altos de Tofete, que está no Vale do Filho de Hinom, para queimarem no fogo a seus filhos e a suas filhas, o que nunca ordenei, nem me subiu ao coração (Jr 7.31; v. tb. 19.5).
O Senhor condena a idolatria e o culto pagão dos filhos de Judá com a declaração: “o que nunca ordenei, nem me subiu ao coração”. Idolatria, assassinato e sacrifício infantil são explicitamente condenados na lei e nos profetas. Entretanto, Jeremias revela a essência do culto idólatra. Judá cultuava de forma improcedente do coração divino. O culto de Judá não se baseava no mandamento divino. Em vez de cultuar Deus segundo seu mandamento, eles “andaram nos seus próprios conselhos, no propósito do seu coração malvado; e andaram para trás, e não para diante” (Jr 7.24). Se os habitantes de Judá tivessem consultado a Palavra de Deus e lhe fossem obedientes, teriam sido poupados da fúria divina:
Lidamos com o Deus muito zeloso que deseja ser cultuado segundo sua estipulação, ou então ele não é cultuado. E não podemos reclamar. Se Deus é o ser descrito pela Sagrada Escritura, é seu direito inalienável determinar e prescrever como será servido.[10]

Adoração vã
Então chegaram ao pé de Jesus uns escribas e fariseus de Jerusalém, dizendo: Por que transgridem os teus discípulos a tradição dos anciãos? Pois não lavam as mãos quando comem pão. Ele, porém, respondendo, disse-lhes: Por que transgredis vós, também, o mandamento de Deus pela vossa tradição? (Mt 15.1-3).
Os fariseus eram líderes religiosos respeitados do povo judeu. Eles criam ter a liberdade de fazer adições aos mandamentos divinos. A lei de Deus continha diversas lavagens cerimoniais para representar a purificação dos impuros. Os fariseus adicionaram outras lavagens para destacar e “aperfeiçoar” a lei de Moisés. Não existe mandamento expresso proibindo essas adições cerimoniais, exceto o Princípio Regulador (e.g., Dt 4.2; 12.31). Elas não tinham fundamentação na Palavra de Deus.
Jesus Cristo é o principal defensor do Princípio Regulador. Ele repreendeu fortemente os escribas e fariseus por fazerem adições à lei divina. O que acontece quando homens pecadores acrescentam regras e regulamentos à lei de Deus? Com o passar do tempo, a tradição humana substitui e pretere a lei divina: “E assim invalidastes, pela vossa tradição, o mandamento de Deus” (Mt 15.6). A igreja cristã antiga acrescentou regras e cerimônias próprias ao culto a Deus e degenerou na Igreja Católica Romana pagã e idólatra. Se não mantivermos a linha divisória onde Deus a traçou, então, prova a história, a igreja degenerará posteriormente em algo um pouco mais bizarro que uma seita pagã. A repreensão de Cristo referente aos escribas e fariseus aplica-se hoje a quase todos (os chamados) ramos da igreja cristã: “Este povo se aproxima de mim com a sua boca e me honra com os seus lábios, mas o seu coração está longe de mim. Mas, em vão me adoram, ensinando doutrinas que são preceitos dos homens” (Mt 15.8,9).

Outros exemplos
O conceito de que apenas o que Deus ordena em sua Palavra é permitido no culto encontra-se na Bíblia toda. O rei Saul ofereceu um sacrifício ao Senhor sem autorização divina. Deus ordenou aos sacerdotes, e não aos reis, o oferecimento de holocaustos. O reinado foi retirado de Saul e de sua família para sempre (1Sm 13.8-14). Considere o rei Jeroboão que estabeleceu um dia próprio de festa, bem como lugares sagrados e ofertas no “mês que ele tinha imaginado no seu coração” (1Rs 12.32,33). O rei Jeroboão era pragmático. Ele não percebia a necessidade de seguir as ordens expressas do culto a Deus. O livro de Reis apresenta seu culto autônomo e não autorizado — além da idolatria associada a ele —, como o paradigma do falso culto. Se o rei Jeroboão foi considerado ímpio por estabelecer seu dia de festa (dia santo), certamente a mesma designação é aplicável aos papas, bispos, e ao povo que estabeleceram o natal, a sexta-feira santa etc.
Paulo, na epístola aos Colossenses, concorda com o ensino do Antigo Testamento referente ao culto. Ele condena quem impõe leis dietéticas judaicas e dias santos à igreja (Cl 2.16). Pelo fato de as leis cerimônias terem sido “sombras” que apontavam para o “corpo” — Jesus Cristo —, elas foram abolidas; e dada a falta de autorização para elas, tornaram-se proibidas. A advertência paulina a respeito da filosofia humana é o pano de fundo da condenação do falso culto e das leis humanas (legalismo): “Tende cuidado, para que ninguém vos faça presa sua, por meio de filosofias e vãs sutilezas, segundo a tradição dos homens, segundo os rudimentos do mundo, e não segundo Cristo” (Cl 2.8).
Paulo condena as doutrinas e os mandamentos humanos: “Se, pois, estais mortos com Cristo quanto aos rudimentos do mundo, por que vos carregam ainda de ordenanças, como se vivêsseis no mundo, tais como: Não toques, não proves, não manuseies? As quais coisas todas perecem pelo uso, segundo os preceitos e doutrinas dos homens; As quais têm, na verdade, alguma aparência de sabedoria, em devoção voluntária, humildade, e em disciplina do corpo, mas não são de valor algum senão para a satisfação da carne” (Cl 2.20-23). Ele afirma que a adição à Palavra de Deus é apenas uma exibição de “devoção voluntária [e] humildade”. Trata-se de devoção “voluntária” em lugar do culto segundo a vontade de Deus. As leis estabelecidas pelos homens suprimem a liberdade que temos em. A lei moral de Deus é perfeita; adições são desnecessárias. Regras e regulamentos humanos não “concedem honra” ao crente.
Deus concedeu à sua igreja um livro de salmos e um dia santo (o dia do Senhor). Pode o homem aperfeiçoar o culto instituído por Deus? Claro que não. É o ápice da arrogância e estupidez imaginar que homens pecaminosos possam melhorar as ordenanças de Deus:
Isso é provocar a Deus, porque reflete sobre sua honra, como se ele não fosse sábio o suficiente para designar a forma do próprio culto. Ele odeia todo fogo estranho oferecido em seu templo (Lv 10.11). Uma simples cerimônia pode, com o passar do tempo, conduzir ao crucifixo. Quem contende pela cruz no batismo, não pode obter também o óleo, o sal e o ungüento? [11]

A necessidade do Princípio Regulador
A história da igreja tem demonstrado que o povo pactual de Deus tem sido desviado, não raro, da simplicidade do puro culto evangélico para todos os tipos de inovações humanas. Dada a natureza humana decaída e sua inclinação ao pecado, era inevitável que a autonomia humana relativa ao culto pervertesse e suplantasse o culto verdadeiro: “E as franjas vos serão para que, vendo-as, vos lembreis de todos os mandamentos do Senhor, e os cumprais; e não seguireis o vosso coração, nem após os vossos olhos, pelos quais andais vos prostituindo. Para que vos lembreis de todos os meus mandamentos, e os cumprais, e santos sejais a vosso Deus” (Nm 15.39,40).
Muitas pessoas afirmam que o Princípio Regulador divino é bastante restritivo. Declaram que ele confina o espírito humano e reprime a criatividade humana. Dizem tratar-se de uma reação exagerada aos abusos cometidos pelo catolicismo romano. Todavia, examinemos as implicações lógicas da permissão de qualquer coisa não proibida pela Palavra de Deus no culto divino.
A primeira conseqüência é a substituição da simplicidade e da natureza transcultural do culto puramente evangélico por uma variedade quase infinita de inovações humanas. Pelo fato de Deus não estabelecer mais a linha divisória entre o conteúdo do culto e suas cerimônias, o homem poderia traçar e retraçar essa divisão como lhe agradasse. A igreja desobediente ao Princípio Regulador divino considera impossível impedir o fluxo de novos conceitos e inovações no culto. As denominações presbiterianas e reformadas que abandonaram o Princípio Regulador no final do século XIX e início do século XX provam a veracidade deste ponto. O padrão da perversão segue mais ou menos dessa forma: Inicialmente, hinos concebidos por seres humanos (não ordenados) são cantados em conjunto com os salmos inspirados por Deus (ordenados); a seguir, em uma geração ou duas, os salmos são completamente substituídos por hinos ou por salmos parafraseados ao extremo. Os hinos antigos, após certo tempo, são substituídos por composições avivalistas “carismáticas”. No início, as igrejas reformadas cantavam os salmos sem acompanhamento musical, pois os instrumentos foram usados apenas no período do templo e, portanto, deixaram de ser usados como um aspecto da lei cerimonial. Muitas igrejas reformadas abandonaram o cântico de salmos a capella e passaram a usar órgãos. Então, dentro de uma geração ou duas as igrejas começaram a usar outros instrumentos, orquestras e até mesmo grupos de rock. Essas inovações descritas são apenas a ponta do iceberg. Pode-se encontrar também nas igrejas chamadas presbiterianas e reformadas: celebração de dias santos (Natal, Páscoa etc.), corais, liturgias complexas, dança litúrgica, grupos de rock, peças de teatro, vídeos de rock, calendário litúrgico, figuras de Cristo, cruzes etc.
Caso se dê ao homem pecador autonomia para escolher como cultuar, o padrão histórico é claro. O ser humano preferirá o culto centrado no homem. O homem pecador é sempre atraído pelo entretenimento (daí a popularidade das “palmas”, e o “pisar forte” do estilo de culto “carismático”, grupos de rock, peças de teatro, corais, solos musicais, e cantores populares e sertanejos* etc.) e pelo ritual e pompa (catedrais, incensos, velas, sinos, dias santos, vestimentas papistas, liturgias etc.). Quando as inovações humanas terão fim? Elas não cessarão até que a igreja obedeça ao Princípio Regulador do Culto. Deus ordenou um mandamento que o homem não pode ignorar: “[O] modo aceitável de adorar o verdadeiro Deus é instituído por ele mesmo, e é tão limitado pela sua própria vontade revelada, que ele não pode ser adorado segundo as imaginações e invenções dos homens [...] nem sob qualquer representação visível, ou de qualquer outro modo não prescrito nas Santas Escrituras”.[12] O falso culto tem origem na mente humana, de acordo com sua imaginação. O culto verdadeiro origina-se na mente de Deus e é revelado na Bíblia:
“Mas isto lhes ordenei, dizendo: Dai ouvidos à minha voz, e eu serei o vosso Deus, e vós sereis o meu povo; e andai em todo o caminho que eu vos mandar, para que vos vá bem. Mas não ouviram, nem inclinaram os seus ouvidos, mas andaram nos seus próprios conselhos, no propósito do seu coração malvado; e andaram para trás, e não para diante” (Jr 7.23,24).
Calvino, no comentário sobre Jeremias, usou este versículo para condenar todas as inovações perversas do culto papal:
Além do mais, caso se considere a origem de todo o culto papal, perceber-se-á que os primeiros a conceber superstições tão estranhas, foram impelidos apenas por sua audácia e presunção, a fim de poder calcar sob os pés a Palavra de Deus. Portanto, todas as coisas foram corrompidas; porque eles colocaram em operação todas as invenções de seu cérebro. Vemos que os papistas são tão apegados a seus erros até o dia de hoje que preferem a si mesmos e às suas quinquilharias que a Deus. E o mesmo acontece com todos os hereges. O que se pode fazer? Como disse, a obediência deve ser mantida como base da verdadeira religião. Caso desejemos render o culto aprovado por Deus, aprendamos a lançar fora tudo o que é nosso, para que a autoridade divina prevaleça sobre todas as nossas razões”.[13]

O verdadeiro culto versus o falso

Verdadeiro culto
Apenas o que Deus ordena em sua Palavra é permitido.Culto centrado em Deus.O conteúdo do culto é a Palavra de Deus objetiva.O culto permanece puro, simples e sem adulteração.O culto baseado na Palavra de Deus possui parâmetros limitados.Completamente bíblico.O culto evangélico puro é transcultural. Desconsiderando-se as barreiras lingüísticas, membros de igrejas fiéis ao Princípio Regulador podem visitar igrejas da mesma mentalidade em qualquer lugar do mundo e, imediatamente, sentir-se bem e em casa. No século XVII, puritanos ingleses ou americanos, presbiterianos escoceses ou irlandeses e holandeses reformados cultuavam a Deus de modo muito similar. Isso não resultou de algum ato de conformidade, mas porque criam no Princípio Regulador e obedeciam a ele. No futuro, quando a doutrina e o culto puros forem revividos, e nações inteiras forem convertidas e entrarem na aliança estabelecida por Deus, a natureza transcultural do puro culto evangélico será muito útil e importante para turistas e homens de negócio. Historicamente, o culto das igrejas reformadas e presbiterianas era puro, até ser abandonado ou redefinido a ponto de se tornar insignificante.O culto bíblico é centrado em Deus e em sua Palavra.Os homens têm liberdade sob a Palavra de Deus.Os homens perdem a liberdade sob seu padrão mutável e arbitrário.O puro culto evangélico incentiva o ecumenismo bíblico e a comunidade.

Falso culto
Tudo o que não é expressamente condenado pela Bíblia é permitido.Conduz ao culto centrado no homem.O culto se torna cada vez mais subjetivo ou místico.O culto é alterado, evolui e é adulterado por tradições humanas.As formas e o conteúdo do culto público são teoricamente infinitos.Basicamente pragmático: o que aparentemente funciona e agrada às pessoas será usado.O falso culto alimenta a autonomia humana pecaminosa. Portanto, ele é uma mistura de paganismo e cristianismo. Pelo fato de possuir teoricamente opções infinitas, as pessoas têm de adaptar, aprender e ajustar o falso culto a cada circunstância cultural e denominacional. Os anglicanos altamente litúrgicos provavelmente se sentem desconfortáveis com os cultos sem programação prévia das comunidades evangélicas de negros. Existem milhares de hinários e de liturgias diferentes. Há grupos de rock e de teatro, orquestras, declamação de poesia, vídeos, apresentações de palhaços, comediantes, humoristas, talk-shows, danças litúrgicas, recitais de órgão, dias santos diversos e calendários litúrgicos diferentes etc. O falso culto fragmenta a igreja.Historicamente, isso tem levado a igreja ao declínio, à heresia e idolatria. A igreja apostólica degenerou posteriormente no papismo.O culto centrado no homem tem por norte o ser humano e seus sentidos. Daí sua degeneração no entretenimento ou nas cerimônias e nos rituais pomposos.Os homens perdem a liberdade sob seu padrão mutável e arbitrário.O falso culto divide a igreja em milhares de facções.Pelo fato de o conteúdo e estilo do culto “evoluírem” e se modificarem, os membros mais velhos das igrejas são separados dos mais novos.
A palavra “liturgia” procede do vocábulo grego leiturgia, e significa: “o trabalho ou serviço pessoal”. Portanto, em certo sentido, todo o culto cristão é litúrgico. Ao mencionar a liturgia em sentido negativo, faço referência à liturgia usada, por exemplo, pelos católicos romanos, episcopais/anglicanos, luteranos e ortodoxos russos (dentre outros). Em sentido negativo, faço referência à liturgia baseada nas tradições eclesiásticas e humanas, por exemplo: o uso obrigatório de livros de oração, do calendário litúrgico, de vestimentas sacerdotais especiais, velas, incensos, dias santos, ajoelhar para receber a comunhão, catedrais, figuras de Cristo e dos santos, música para a igreja, corais etc. The Book of Common Order [O livro de ordem comum] designado pelos historiadores como a liturgia de Knox, foi usado pelos escoceses até 1645. Ele tomava por base a ordem do culto das igrejas reformadas de Estrasburgo, Frankfurt e Genebra. A atitude de John Knox e dos primeiros presbiterianos para com as “orações comuns” da Order [Ordem] era limitar seu uso ao treinamento dos ignorantes na arte da oração extemporânea:
O uso contínuo e imperioso da liturgia desarmoniza com o espírito dos reformadores, que confiavam na inspiração do Espírito Santo na oração.[14] Os substitutos sem formação dos ministros — que requeriam essas muletas mentais, como o Book of Discipline [Livro de disciplina] — admitiam: “até atingir maior perfeição...”. Em termos similares, o bem instruído historiador Calderwood declara: “Ninguém está preso às orações desse livro; elas foram estabelecidas apenas como exemplos... Colocadas como modelos”.[15]
[1]Confissão de fé de Westminster, I.VI.
[2]Uma circunstância de exemplo histórico é o culto público no dia do Senhor. Não existe mandamento explícito ou imperativo divino para alterar o culto público do sétimo dia (sábado) para o primeiro dia (domingo) da semana, registrado na Escritura. Entretanto, no Novo Testamento, a alteração do sétimo para o primeiro dia é registrada como fato consumado (At 20.7; 1Co 16.2; Ap 1.10). Nem todos os mandamentos divinos ou palavras proféticas foram incluídos na Bíblia. A prática universal da igreja apostólica, como o culto público no dia do Senhor, é obrigatória por causa da autoridade exclusiva conferida aos apóstolos (mediante revelação direta). Quando os apóstolos morreram, a revelação direta cessou e o cânon foi encerrado; agora, nossa doutrina, culto e todos os exemplos históricos estão limitados à Bíblia — a Palavra de Deus. Quem apela às tradições eclesiásticas, inventadas após o fechamento do cânon, para autorizar o estabelecimento de ordenanças relativas ao culto encontra-se, em princípio, em situação não muito melhor que a de Jeroboão filho de Nebate (1Rs 12.26-33).
[3]James H. Thornwell, Collected Writings (Richmond: Presbyterian Committee of Publication, 1872), vol. 2, p. l63.
[4]XXI.I.
[5]Thomas E. Peck, Miscellanies (Richmond: Presbyterian Committee of Publication, 1895), vol. 1, p. 82.
*O autor diz literalmente: “in January, in Minnesota” ([no mês de] janeiro em Minessota). [N. do T.]
[6]A primeira idéia contida nelas é a de deveres religiosos, prescritos por Deus, como método instituído pelo qual ele deve ser cultuado por suas criaturas... Portanto, as ordenanças, descritas dessa forma, devem ser encaixadas segundo a designação divina. Nenhuma criatura pode ter certeza de engajar-se em qualquer forma de culto com a pretensão de sua aceitação ou satisfação da parte de Deus; apenas Deus — o objeto do culto — possui o direito de prescrever o modo de ser adorado. A instituição, por parte de qualquer criatura, da forma do culto seria um exemplo de profanação e de ousada presunção; o culto realizado seria “vão”, como diz nosso Salvador concernente ao que não possui maior sanção que “os mandamentos de homens” — Thomas Ridgely, A Body of Divinity (New York: 1855), vol. 2, p. 433.
[7]Jeremiah Burroughs, Gospel-Worship (London: Peter Cole, 1650), p. 2-3.
[8]Ibid., p. 9-10.
[9]William G. Blaikie, Commentary on Second Samuel (New York: A.C. Armstrong and Son, 1893), p. 88.
[10]Samuel H. Kellogg, The Book of Leviticus (New York: Hodder and Stoughton, n.d.), p. 240.
[11]Thomas Watson, A Body of Divinity (London: Passmore & Alabaster, [1692]1881), p. 267. *No original a referência é ao estilo “country” de música, o equivalente em popularidade ao estilo sertanejo nacional. [N. do T.]
[12]Confissão de fé de Westminster, XXI.I.
[13]Calvin’s Commentary, sobre Jr 9.21-24 (Grand Rapids: Baker, 1989), vol. 9, p. 398 (ênfase adicionada).
[14]A expressão “inspiração do Espírito Santo” não significa que os primeiros presbiterianos criam que suas orações eram “sopradas por Deus” e inerrantes como as Escrituras. Ela significa apenas “com o auxílio ou ajuda do Espírito Santo”.
[15]J. King Hewison, The Covenanters (Glasgow: 1908), vol. 1, p. 41-4.
(Tradução de Rogério Portella)
The Scriptural Law of Worship
Worshiping the One Only True God
The Right Manner of Worship and Drawing Nigh Unto ...
O Princípio Regulador do Culto